Não sei se esta é a melhor hora para começar a escrever esta reflexão, mas quem sabe estar sensível vai me ajudar a me desprender de qualquer tipo de cuidados com as palavras ou sentimentos.
Eu queria mesmo era fazer um resumo destes três anos de vida de Matias.
Primeiro o luto, o amor que dói... Ai, e como doía. Essa dor, essa preocupação, essa rejeição não me permitia ver quem quer que fosse que estivesse na minha frente. O meu filho, aquele com o qual sonhei e planejei por toda minha vida, nunca existiu e no seu lugar veio uma criança cheia de desafios, com os quais nunca sonhei ou quis passar. Não, não era pra ser assim. E agora, o que vai ser dele? O que vai ser de mim? E aquele meu filho que eu tanto queria, não dá pra trocar???????? Não, não dava...
Esse luto foi muito forte, principalmente no primeiro ano. As
experiências vividas com outras mães e seus filhos muito se diferenciava da
minha. Busquei na minha fé em Deus ajuda, consolo e tentar não entender, mas
aceitar. Também busquei ajuda profissional, a terapia também tem me ajudado
muito... Fui procurando minha identidade de volta, me separar do meu filho,
busquei meu tempo com o “mundo” para poder sair dessa relação mãe/filho muito
ligada ainda, muito narcisista... Eu, uma pessoa ligada às artes, que aprecia o
que é belo e sempre muito exigente comigo, eu mesma gerei um filho
“imperfeito”. Há se eu pudesse corrigir como faço com minhas pinturas, ou
reorganizar, planejar, como faço com a arquitetura. Do jeito que eu quero.
Nesse caso, não dava.
Passou-se o primeiro ano e junto com ele a dor foi se
acalmando, olha, já conseguia ver o menino, e como ele é bonitinho, fofo mesmo.
Mas eu ainda desejava que ele fosse diferente, eu ainda o comparava as outras
crianças e sofria, doía. Nossa luta, incansável através das terapias, foco,
vamos lá... Aos poucos as conquistas chegavam. Começou a ficar sentado, tomar
líquidos pelo canudo, mastigar, sua coluna numa melhor postura, ficar de pé com
apoio, engatinhar com ajuda nas pernas... E como é simpático esse menino! Resistente
como qualquer criança pra fazer o que não quer, principalmente nas terapias,
mas não tenho do que me queixar, sempre dormiu bem (dez horas seguida durante a
noite), come muito bem, é acessível às pessoas que, claro, tem que conquistá-lo.
E assim se passou o segundo ano. Eu já o enxergava!Logo entrou na escola e deu um salto na sua independência. Agora eu estava nos bastidores, como costumo dizer. Sua cognição estimulada e o entendimento deram um salto. Hoje entende tudo o que digo, aponta e balbucia mostrando o que quer. É parte de um grupo. Algo que é só dele... Esse universo da escola é realmente fascinante! E embora tivesse a questão de encarar que seu filho é o “diferente”, ele foi aceito no seu grupo. Mas sei que eles são muito pequenos e daqui a pouco formarão suas “panelinhas”, penso... Será que Matias fará parte de alguma delas? Vão tirar sarro com ele?
Ei, isso é outra coisa que tenho aprendido, a deixar a fantasia do que estar no futuro passar e não fazer morada na minha mente. São tantas outras, que da até pra rir... Será que vão chamá-lo pras festinhas de aniversário? Será que ele vai casar? Vai ser independente? Pode parecer ridículo agora, mas elas passaram por minha cabeça e tem algumas que ainda dão umas voltas, mas as mando embora novamente. E quanto ao sarro que possam a vir tirar dele, quem nunca passou por isso? Tenho fé que ele saberá dar conta. Tenho que apostar nisso.
Suas órteses foram sendo trocadas com o tempo, acho tão lindo isso, ele tá crescendo. É um registro marcante. Hoje ele está de órtese nova (rígida) e usa tênis! Matias só teve dois tipos de botinhas, onde usava uma palmilha, mas agora já não suportava seu peso, ele está crescendo e pode usar outros sapatos, contanto que caibam as órteses novas. Hoje, o uso de órteses, ou aparelhos que ajudem Matias são uma bênção pra mim... Ainda não sabemos se precisará de cadeiras de rodas, por enquanto usa o carrinho. Com certeza usará o andador. Que venham, venham para auxiliá-lo. O importante é conquistar, mesmo que de forma diferente.
Todo esse tipo de aparato chama atenção. Os olhares!
Sinceramente, prefiro o olhar curioso, pode até vir me perguntar. Ei, eu também
tive que aprender. Não sabia de nada disso. Não sabia que a paralisia cerebral
tem diversos níveis, não sabia do alcance do desenvolvimento através do
estímulo precoce. A fisioterapia pra mim era pra cuidar de pessoas que se
machucavam, terapeuta ocupacional eu nem sabia o que era!
Por isso quero expor meu filho, ele não tem nada o que esconder.
Pessoas com necessidades especiais deviam estar em todo canto, sim, por que
elas existem aos montes. Acredito que nos tempo de hoje, isso só não aconteça
mais por conta da falta de acessibilidade, isso sim os exclui do convívio
social. Infelizmente nosso país tem um longo caminho a trilhar. Contudo, eu
vejo que estou saindo do luto à luta, as posturas são totalmente diferentes,
uma olha pra baixo a outra olha pra frente. Hoje consigo ver Matias como
indivíduo, separado de mim, e ele merece todo o meu respeito, como não aceitá-lo
por ser diferente, como? Por que não eu?
Disse no início que precisava do mundo para poder cortar um
pouco essa relação mãe/filho... Hoje procuro Matias pra cortar um pouco minha
relação Paula/mundo. Procuro-o para trazer alívio, calma, paz... É engraçado,
realmente o tempo é uma dádiva, algo que saboreamos lentamente e por conta
disso mesmo nós ficamos mais maduros, mudamos de dentro pra fora.
Nunca quis fantasiar nossa história com Matias, acredite,
não é um caminho fácil. Meu filho não é anjo, meu filho é um menino com
necessidades especiais que tive dificuldade de aceitar porque é diferente! Eu
queria ser igual a todo mundo! Fazer parte! Mas Deus me chamou sim, através de
Matias, para trilhar novos caminhos, para romper padrões, para remar contra a
maré, pra encontrar paz, alegria, vida em meio a uma confusão de sentimentos.
Ele tem esticado minha fé, me pondo à prova. Dele eu não largo, não arredo o
pé... Agora entendo a luta com o anjo, eu tenho lutado e clamado ao único que
tem o poder de mudar nossa história, ao único a que devo toda honra, toda minha
gratidão independente das circunstâncias.
Aprendi também que dor não se compara e que cada um tem a
sua, desde um(a) adolescente que levou um fora da(o) namorada(o), a um amputado
ou alguém que recebeu um diagnóstico de câncer, é a dor deles, é particular.
A sociedade tem um alto padrão para o que é sucesso, para o
que é belo, saudável e isso vai sendo enraizado em nós. Eu me sentia então em
dívida (como bem colocou minha terapeuta) com a sociedade por ter tido um filho
“imperfeito”.
No final das contas percebemos que não temos o controle, eu
não tenho. Podemos ir até certo ponto e fazer nossas escolhas com o que a vida
nos traz. O segredo é a gratidão, é conseguir ver o quanto temos que agradecer
por tantas outras coisas maravilhosas em nossas vidas. Sim, no mundo de hoje
isso é um exercício contínuo que temos que fazer. Decidir acreditar! Eu decido
acreditar, acreditar num Deus de amor e que tem o controle.
Continuo clamando por cura na vida de Matias, ela já vem
acontecendo, algo além do físico. Uma vez li que a dor tem o poder de libertar,
entendo que essa dor que cura é pra mim e não para Matias. A cura dele não
passa do plano físico, cognitivo... pelo menos por enquanto, e ela acontecerá
conforme a vontade e propósitos do Senhor, eu sempre vou estar lutando com ele
fazendo o que for da minha parte.
O que posso dizer agora, é que começo a contemplar a
Holanda, e estou achando que é um lugar fantástico!!
Pra que quiser entender :
"Ter um bebê é como planejar uma fabulosa viagem
de férias - para a ITÁLIA! Você compra montes de guias e faz planos
maravilhosos! O Coliseu. O Davi de Michelângelo. As gôndolas em Veneza. Você pode até aprender algumas
frases em italiano. É tudo muito excitante!
- Após meses de antecipação, finalmente chega o grande dia! Você arruma suas malas e embarca. Algumas horas depois você aterrissa. O comissário de bordo chega e diz:
- BEM VINDO À HOLANDA!- Após meses de antecipação, finalmente chega o grande dia! Você arruma suas malas e embarca. Algumas horas depois você aterrissa. O comissário de bordo chega e diz:
- Holanda!?! - Diz você. - O que quer dizer com
Holanda!?!? Eu escolhi a Itália! Eu devia ter chegado à Itália. Toda a minha
vida eu sonhei em conhecer a Itália!
Mas houve uma mudança de plano vôo. Eles aterrissaram
na Holanda e é lá que você deve ficar. A coisa mais importante é que eles não te
levaram a um lugar horrível, desagradável, cheio de pestilência, fome e doença.
É apenas um lugar diferente. Logo, você deve sair e comprar novos guias. Deve
aprender uma nova linguagem. E você irá encontrar todo um novo grupo de pessoas
que nunca encontrou antes. É apenas um lugar diferente. É mais baixo e menos
ensolarado que a Itália. Mas após alguns minutos, você pode respirar fundo e
olhar ao redor, começar a notar que a Holanda tem moinhos de vento, tulipas e
até Rembrants e Van Goghs.
Mas, todos que você conhece estão ocupados indo e
vindo da Itália, estão sempre comentando sobre o tempo maravilhoso que passaram
lá. E por toda sua vida você dirá: - Sim, era onde eu deveria estar. Era tudo o
que eu havia planejado!.
E a dor que isso causa nunca, nunca irá embora. Porque
a perda desse sonho é uma perda extremamente significativa. Porém, se você
passar a sua vida toda remoendo o fato de não ter chegado à Itália, nunca
estará livre para apreciar as coisas belas e muito especiais sobre a Holanda.
"
BEM VINDO À HOLANDA!
por Emily Perl Knisley, 1987